sexta-feira, 7 de maio de 2010

Manifesto a favor de uma vida dupla

Fui criada para encontrar no trabalho o sentido da vida. Acho que a geração dos meus pais achava que nós poderíamos ser tudo que quiséssemos desde que trabalhássemos com aquilo que gostássemos. Doce ilusão. Esta não é a vida, ao menos esta não foi a vida para mim.
Trabalho pode ser bom sim, mas pode ser péssimo também. E independente disso, trabalho é simplesmente trabalho. Como diz uma amiga: “se trabalho fosse bom ninguém te pagava para fazer”. Claro que é sempre melhor trabalhar com aquilo que você gosta (se você tiver a sorte de ter esta clareza), afinal a maior parte de sua vida será gasta com a labuta. Mas, independente de ter escolhido a profissão mais parecida com você, é difícil imaginar que acordará todas as manhãs alegre e satisfeito, louco para viver mais um dia de trabalho. Mais um dia de chefes, colegas competitivos, pepinos, erros, canseira, repetições...
Outra coisa que sempre ouvi dos meus pais é que o trabalho é algo natural do ser humano. Tenho que dizer que novamente venho discordando dessa história. Como assim natural? A própria origem da palavra parece nos dar uma dica. Ela vem do vocábulo latino tripaliu- denominação de um instrumento de tortura formado por três (tri) paus (paliu), uma espécie de chicote que, digamos, incentivava escravos e pobres sem posses a “cooperarem” e realizarem as tarefas que lhes eram reservadas. Trabalhar significava então ser torturado por meio do tripaliu.
É claro que com o tempo as coisas mudaram. O trabalho passou a ser considerado digno do mais digno ser humano e, mais ainda, passou a ser defendido por muitos como algo “natural”. Daí a ideia de que se você trabalha com o que gosta, tudo será maravilhoso. A realização será plena e o dinheiro, bem, ele virá... Ok, mesmo que ele venha. Será que todos os seus vazios serão preenchidos naquela labuta, ainda que sob o tema escolhido e com a remuneração adequada? Tenho que dizer que não. O ser humano é infinitas vezes mais complexo do que esta criação meramente produtiva deste “trabalhar” diário.
A noção de tempo, por exemplo, vem sendo cada vez mais encaixada nas demandas de produtividade das empresas, repartições e universidades (sim, porque até estas já se moldaram aos parâmetros capitalistas). A hora de ter um filho não está mais ligada ao tempo biológico da mulher, mas sim ao tempo de carreira que vem sempre em primeiro lugar. Não basta casar, não basta amar, não basta querer, é preciso poder. Uma mulher jovem que ainda pretenda ter um filho é quase um incômodo para o mundo do trabalho. Afinal, há o tempo da gestação, há o tempo da amamentação e há ainda o tempo da escola, dos médicos, das doenças e dos infinitos problemas domésticos. E não é preciso dizer que todos estes tempos tomarão o tempo precioso do trabalho.
Claro que se não há trabalho organizado não há alimento, não há moradia, não há escola, não há como a sociedade progredir. Mas também se não há tempo livre não há perpetuação da espécie, não há filosofia e muito menos poesia. Não estou aqui para defender o ócio total, apesar de achar que um pouco dele é necessário para que a humanidade possa encontrar caminhos melhores de sobrevivência. Mas gostaria que fosse possível admitir que não somos seres plenamente encaixáveis em uma única função. Somos muito mais que isso. Somo seres repletos de curiosidades, dúvidas e sonhos. E isso nos fez chegar onde estamos. A maioria das pessoas interessantes vivia vidas duplas e, por vezes, múltiplas. Da Vinci, por exemplo, além de um artista fantástico, era um estudioso da matemática e da medicina. Marx nunca trabalhou e serve de base para as ciências sociais ainda hoje. E, entre os recentes e conterrâneos, lembremos de Drumonnd, que era um mero funcionário público e escreveu uma das obras mais lindas que conheço.
Até quando vamos fingir que é possível se encaixar em um único papel? Quando vamos aceitar que o desencaixe é a coisa mais interessante do ser humano? Por estas e outras é que sou a favor de uma vida dupla. Se a sociedade não te permite viver escancaradamente suas diferentes aptidões e desejos, é preciso criar uma saída. Admitir a dualidade é um primeiro passo.

Um comentário:

  1. vai um comentário um tanto quanto atrasado.mas Marx falou muito do trabalho que não aliena mas expressa o homem, a sua criatividade, manifesta sua humanidade. é desse trabalho que eu falo quando vejo nele a possibilidade de criação, de ultrapassar o nosso lado animal e tocar a face de Deus. o livro Dançar a vida, de um filósofo francês que eu não lembro o nome, mostra como a arte e a expressão de sentimentos e emoções pode se manifestar em qualquer coisa - lembre-se da festa de Babete

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